sábado, 6 de dezembro de 2008

O Brasil na Bagagem


É interessante como os brasileiros e americanos (e, através destes o mundo) se entregaram a Tom Jobim por caminhos diferentes. O que “Chega de Saudade” significou para o Brasil foi representado, nos Estados Unidos, por “Desafinado” (“Off-Key” , na versão em inglês). A emoção que sentimos ao ouvir “Samba de Avião” pode ser incompreensível para os gringos – que, em compensação se apaixonaram por “Wave”. Os dois grandes casos de paixão em comum foram por “Garota de Ipanema” e claro “Águas de Março”.

De 1962 para cá, “Garota de Ipanema” fez de tudo na vida: nasceu Cult, tronou-se um sucesso, depois um mega-sucesso, passou a ser considerada o hino da bossa nova, foi reduzida a kitsch e, desde há muito, incorporou-se, com tranqüilidade, ao repertorio universal: é um dos maiores Standards do século XX. Já foi e continua a ser gravada por tanta gente que não se sabe como as sociedades que cuidam de seus royalties mantêm o controle: pelas ultimas contas, “Garota de Ipanema” teria perto de 300 gravações – mas o numero real deve ser o dobro disso, somando-se as obscuras versões não autorizadas que vivem sendo feitas. Na internet, fica-se sabendo de gravações por piano solo, orquestra sinfônica, quarteto de cordas, banda de gaita e foles e até gangues de funk e hip hop. O espectro de seus interpretes vocais vai de Frank Sinatra, que você sabe muito bem quem é, a Floyd the Barber, de quem você nunca ouviu falar (trata-se de um cantor de rap). Tudo isto é legalizado, mas, e as paródias de “Garota de Ipanema” – humorísticas, sensuais e tantas outras – que até hoje abundam, principalmente nos Estados Unidos?

Neste momento, os principais portais ou mecanismos de busca da internet, contêm, cada qual, um mínimo de 600 mil entradas relativas á “The Girl from Ipanema” – vasculhá-las por inteiro, só no espaço de uma ou duas vidas. Há paginas falando da Jeune Fille d’Ipanema, da Ragazza de Ipanema e da Chica de Ipanema, o que é normal, mais há também sites em russo, grego, japonês, chinês, coreano, árabe e outras línguas para as quais o computador precisa ter os caracteres adaptados. A partitura contendo a melodia de Tom, a letra original de Vinicius de Moraes e a versão em inglês de Normal Gimbel, esta exposta à exaustão na rede, muitas vezes com áudio (na gravação de Astrud com Getz). No caso da letra de Vinicius, não faltam adaptações fonéticas para ajudar o pessoal de língua inglesa a reproduzir a interpretação de João Gilberto resultando em coisas assim: “Aw-lyuh kee koey-suh mah-izh leen-dah/Mah-iz shay-ya dee grah-suh....”

Internautas dos EUA, do Japão e da Alemanha trocam mensagens relatando onde estavam, fazendo o quê e o que sentiram ao ouvir “The Girl from Ipanema” pela primeira vez. Mais ou menos como, por muitos anos, se fez com o assassinato do presidente John Kennedy em Dallas, Texas a 22 de novembro de 1963. Não por acaso, seu lançamento internacional, na gravação de Astrud, se deu em seguida à morte de Kennedy, a há quem associe seu imediato sucesso nos Estados Unidos ao efeito calmante que a canção teria sobre os americanos depois de um impacto violento – como se, de repente, para eles, o mais sensato fosse jogar tudo para o alto e ir para uma praia chamada Ipanema, uma Xangri-la moderna, bem longe do Vietnã, onde garotas altas e bronzeadas passeavam soberbas e soberanas pelas areias, e todo mundo fazia “Ah....”. A diferença é que cada vez há menos gente capaz de se lembrar onde estava naquele longínquo dia em que mataram Kennedy – mas “The Girl from Ipanema” continua a marcar quem, até hoje, a ouve pela primeira vez.

O mesmo acontece com “Águas de Março”, que, em português ou inglês, transporta o ouvinte para uma realidade fora de tempo e do espaço deste insensato mundo. Na realidade – assim como “Chovendo Roseira” – é uma crônica do sítio da família de Tom em Poço Fundo, aonde, desde cedo, ele foi se esconder dos carros, aviões e arranha céus que turvaram a sua fome de paisagem. Ou seja, um universo chão mateiro e, à primeira vista, a antítese da bossa nova, se comparado às temáticas urbanas e cariocas de praia/verão/mulher de sua obra inicial, e de que “Garota de Ipanema” é o exemplo supremo. Mas, curiosamente, aqueles paus e pedras e fins do caminho eram bossa nova do mesmo jeito – como tudo que ele fez.

Tom compôs numa variedade de gêneros, ritmos e metros brasileiros, como se promovesse uma verdadeira ocupação musical do Brasil, e a todos imprimiu uma sonoridade “bossa nova” – nomenclatura que, ao contrário de alguns, ele nunca rejeitou, numa notável fidelidade à musica que o consagrou. Tom foi também o herdeiro, e talvez o ápice, de uma grande tradição do piano brasileiro, que começou com Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Sinhô, Ary Barroso, Custódio Mesquita, Vadico, Alcyr Pires Vermelho e outros, por ordem de entrada em cena, e prossegue hoje com Gilson Peranzetta, Francis Hime, Wagner Tiso e tantos mais.

Em 1967, quando aceitou o convite de Frank Sinatra, então o maior cantor do mundo, para gravar com este um disco de suas canções, Tom deve ter tido um problema com malas ao embarcar para Los Angeles: excesso de peso. Era inevitável. Afinal, levava o BRASIL NA BAGAGEM.

Fonte:

Livro: Coleção Folha 50 anos da Bossa Nova
Volume 1 - Antonio Carlos Jobim

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